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sábado, 2 de novembro de 2013

*Lidar com a morte, manipulando nossos mecanismos de memória

Familiares de quem morreu costumam crer em algum tipo de transcendência, e que a pessoa continua existindo em algum lugar. Por isso, cultivam a individualidade de quem se foi, assinala Fábio Augusto Steyer

Por: Márcia Junges

De acordo com o historiador e jornalista Fábio Augusto Steyer, “as relações do homem com a morte (ou as atitudes humanas diante dela) presentes nos cemitérios das cidades gaúchas Santo Antônio da Patrulha e Caraá, podem ser observadas e analisadas a partir dos epitáfios, objetos colocados nos túmulos, arquitetura tumular, estatuária, disposição espacial dos cemitérios, entre muitas outras coisas”. Ele destaca que, em larga medida, existe uma postura de negar a morte “como fim último da existência, a partir da necessidade de crença em algum tipo de transcendência”. Acontece, também, “a afirmação da individualidade do morto. As pessoas querem acreditar que o morto continua existindo em algum lugar, depois da morte, e mantendo a mesma individualidade que tinha na terra”. As afirmações fazem parte da entrevista exclusiva concedida por Steyer à IHU On-Line, por e-mail.

Steyer é graduado em Jornalismo, Letras e História, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Pela mesma instituição, é especialista em Produção Cinematográfica e mestre em História. Em seu doutorado em Letras, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), defendeu a tese A estrada perdida de Telmo Vergara. De sua produção bibliográfica, citamos: Cinema, imprensa e sociedade em Porto Alegre - 1896-1930 (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001) e Ser disperso (Porto Alegre: WS Editor, 2003). Na obra Cemitérios do Rio Grande do Sul: arte, sociedade, ideologia (2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008), organizada por Harry Rodrigues Bellomo, colaborou com o capítulo “Manifestações antropológicas da morte em alguns cemitérios do Rio Grande do Sul”.

IHU On-Line - Quais são as representações e manifestações antropológicas da morte que você detectou com sua pesquisa em cemitérios gaúchos?

Fábio Steyer - As manifestações são as mais variadas, e muitas diferenças e semelhanças podem ser encontradas nas diferentes regiões do estado. Para sua análise, se deve levar em conta principalmente as características culturais de cada região, que envolvem questões de imigração (alemã, italiana, polonesa etc.), religiosas, entre outras. De qualquer forma, as relações do homem com a morte (ou as atitudes humanas diante dela) presentes nos cemitérios podem ser observadas e analisadas a partir dos epitáfios, objetos colocados nos túmulos, arquitetura tumular, estatuária, disposição espacial dos cemitérios, entre muitas outras coisas.

HU On-Line – O que as inscrições tumulares revelam sobre as concepções de morte do homem contemporâneo?

Fábio Steyer - A postura predominante é de negação da morte como fim último da existência, a partir da necessidade de crença em algum tipo de transcendência (especialmente a religião cristã, com seus preceitos) e da afirmação da individualidade do morto. As pessoas querem acreditar que o morto continua existindo em algum lugar, depois da morte, e mantendo a mesma individualidade que tinha na terra. Como já disse Edgar Morin,  existe uma necessidade antropológica da parte do homem em acreditar que a morte não é o fim de tudo. Mesmo que não exista consenso sobre seu real significado. Dessa forma, vemos inscrições que supervalorizam a biografia do morto, destacando apenas suas qualidades, e nunca seus defeitos, além de aspectos marcantes de sua vida, como a profissão, por exemplo. Você nunca vai encontrar uma inscrição que diga que fulano traía a mulher, batia nos filhos. Mas sempre que foi bom marido, pai zeloso. Além disso, os epitáfios normalmente têm a função antropológica de “tranqüilizar” a família, dizendo que o morto está bem, em algum lugar da eternidade. É muito comum um tipo de epitáfio em primeira pessoa, como se o próprio morto estivesse falando com a família e a tranqüilizando. Também há epitáfios em que a família se dirige ao morto, como que estabelecendo algum tipo de “comunicação” com ele. Faz parte dessa nossa necessidade antropológica para lidar com a morte, manipulando nossos mecanismos de memória.

IHU On-Line – Como essas inscrições tumulares se relacionam com a preservação da memória do falecido?

 Fábio Steyer - Remeto à questão anterior. É a supervalorização da biografia do morto. Se é jogador de futebol, isso aparece no epitáfio. Se foi advogado, já vimos a placa do escritório de advocacia colocada no mausoléu. Se teve morte trágica, faz-se questão de colocar isso no epitáfio. E assim se preserva a memória do morto, aquilo em que ele se destacou durante a vida. E, como já destaquei, há aquela questão de manipular os mecanismos de memória, colocando no epitáfio (e não apenas ele exerce essa função, mas o túmulo como um todo, com os objetos colocados) apenas aquilo que se quer lembrar na hora do culto ao morto, geralmente apenas as coisas boas.

IHU On-Line – Quais são as diferenças entre os túmulos de crianças de Santo Antônio da Patrulha, no Rio Grande do Sul, e os de adultos?  Há peculiaridades entre as formas de marcar a memória do falecido se ele é adulto ou criança?

 Fábio Steyer - Faz tempo que visitei os cemitérios de Santo Antônio e hoje muita coisa deve estar diferente. Contudo, de um modo geral, sem dúvida há diferenças marcantes. Algo muito comum não só no estado, mas por todo o país, são as fotos de crianças mortas colocadas nos túmulos. É algo tétrico, mas normalmente são recém-nascidos que não haviam tirado nenhuma foto. Então se tira uma foto da criança no caixão, ou mesmo tenta se disfarçar a foto, como se ela estivesse ainda viva, mas analisando bem se vê que já está morta. Há também os túmulos das crianças “sem nome”, também recém-nascidos que são enterrados nos jazigos da família. Então, aparece lá: “um membro da família”. E também há o caso do “nome que não vingou”. No caso, a mulher tem problemas para engravidar, e perde vários bebês. Então, encontramos uma série de túmulos, um ao lado do outro, com o mesmo nome, todos de bebês recém-nascidos. A família dá a todos o mesmo nome, pois foi o nome que “não vingou”. Fora isso, tem aquela coisa que até hoje me impressiona bastante de colocar os brinquedos das crianças nos túmulos, ou até mesmo chocolates (na época de Páscoa, como encontramos certa vez em Gramado e Canela), tratando a criança como se ela estivesse viva.

IHU On-Line – Nesse sentido, como a morte é interpretada por determinadas culturas, como, por exemplo, a gaúcha?

Fábio Steyer - Seja numa concepção cristã mais tradicional ou mais frouxa, temos essa necessidade antropológica de negar a morte e crer em algum tipo de transcendência, mantendo a individualidade do morto. Isso é a base de tudo. O afrouxamento de que falo diz respeito a um certo desligamento dos valores cristãos mais tradicionais. Assim, quanto mais recentes os túmulos, mais comum é vermos menos epitáfios com textos bíblicos ou referências aos preceitos cristãos, e mais epitáfios que valorizam a individualidade do morto, a sua biografia, ou formas mais individuais de ligação com o lado religioso e espiritual. Além disso, os símbolos cristãos (estátuas de santos e anjos, símbolos como a palma, a pomba e tantos outros) têm seu significado original esvaziado, sendo para as famílias muito mais apenas adornos para os túmulos do que símbolos ligados ao cristianismo e sua visão de vida e morte.

HU On-Line - Alguns estudiosos afirmam que o homem contemporâneo posterga e nega a morte ao recorrer a expedientes que o mantém sempre jovem. Há uma fuga da morte em nossos tempos?

Fábio Steyer - Vou citar mais um exemplo que evidencia isso. É muito comum que pessoas que morrem bastante idosas coloquem no túmulo fotografias de quando eram bem mais jovens. Sem dúvida, isso é a negação da morte.

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