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sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

MÍSTICA E MÍSTICOS: TENTANDO DESCREVER A MÍSTICA (3ª Parte)

Dom Frei Vital João Wilderink, O. Carm.
 FÉ E MÍSTICA            
A espiritualidade é um caminho de não-ser para ser, um processo divino-humano de transformação em que podemos distinguir cinco níveis ou dimensões: criação, recriação ou redenção, semelhança, amor e glória. A mística pode tomar forma em cada uma dessas dimensões. O predomínio de uma determinada dimensão resulta em determinado tipo de mística.[1] Não existe, portanto, a mística como um prêt-a-porter. Aliás, o mesmo podemos afirmar da fé que é também uma caminhada que no concreto do seu acontecer acentua determinada dimensão. Seria interessante investigar o que alguém quer dizer quando afirma: tenho fé em Deus, ou quando um repórter, no fim de uma entrevista, pede “uma mensagem de fé” para seus ouvintes ou leitores.
Existe uma relação íntima entre fé e mística. Na fé já estamos no nível teologal: é o próprio Deus que dá ao ser humano a capacidade de relacionar-se diretamente com Ele. Portanto a fé é a raíz da vida espiritual: “Deus amou o mundo a tal ponto que deu o seu Filho único, para que todo o que nele crer não morra, mas tenha a vida eterna”(Jo 3, 16). Na fé nos apoiamos na palavra de Deus como condição da nossa peregrinação sobre esta terra. É peregrino quem vive no meio das realidades deste mundo e, ao mesmo tempo, caminha para além delas até seu fundamento invisível: “Pela fé compreendemos que o universo foi organizado por uma palavra de Deus, de sorte que as coisas visíveis provêm daquilo que não se vê”(Hb 11, 3). Caminhada feita de confiança, que sempre de novo se esbarra com as nossas exigências de autonomia racional diante das “evidências” das coisas visíveis: “Pela fé, Abraão obedeceu à ordem de partir para uma terra que devia receber como herança, e partiu, sem saber para onde iria”(Hb 11,8).
Mas, o Mistério só pode ser percebido na fé quando se torna presente. Seria irracional deixar ao homem a escolha do modo em que Deus revela sua presença porque o homem só sabe criar ídolos. Até hoje tropeça nos deuses que ele já fabricou e continua a fabricar! “Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me conheces? Quem me vê, vê o Pai. Como é que tu dizes: ‘Mostra-nos o Pai’? Não acreditas que eu estou no Pai e que o Pai está em mim?” (Jo 14, 9-10). Para tornar-se presença o Mistério serviu-se da própria realidade criada por Ele, entrando no tempo e no espaço. Ele se fez homem com a sua vida que nasce, se desenvolve, morre. Loucura para os racionalistas e liberais de todos os tempos, escândalo para os que se reservam o direito de interpretar o que Deus pensa.[2]
A fé faz entrar no espaço vital de Jesus o espaço da manifestação do Pai que, de maneira intensa, acontece no mistério da cruz. Mas, se não fosse a cruz do Ressuscitado, a fé não teria nenhum valor (1Cr 15,16). Quem pela fé adere a Jesus pode fazer as obras dele, inclusive outras que são maiores na sua força reveladora, uma vez que Jesus ressuscitou (cf Jo 14, 12-13). É que no tempo, em cada momento do tempo existe o “Hoje” de Deus. Pela fé o captamos mediante sinais, sinais dos tempos, como aprendemos a dizer depois do Vaticano II. Esse “Hoje” não é uma abstração, uma realidade inteligível despojada das aparências sensíveis e históricas. É perceber, ao mesmo tempo, a realidade histórica em si mesma e enquanto manifestação divina. Não se trata, porém, de uma visão evidente. Na fé o Mistério de Deus nos é dado gratuitamente. Mas, a fé tem também o seu lado subjetivo: entra aqui a consciência  pessoal que formamos desse dom. A fé é “a vitória sobre o mundo”(1 Jo 5,4). Mas o “mundo” não são somente os homens e as situações, o acontecimentos e o que se passa nele, mas também nós mesmos, o nosso jeito de ser, com todas as suas tensões, fragilidades e crises. A fé, além de ser um reconhecimento certo e firme da verdade, fundado não em provas e argumentos, mas na confiança que temos na testemunha que assegura essa verdade  para, assim, orientar a própria existência à luz dessa verdade.[3] A fé, unida à esperança e à caridade, torna-se a razão do nosso viver. Isto, porém, não acontece sem um despojamento e uma purificação do aspecto subjetivo da fé.
As virtudes teologais oferecem ao ser humano o dinamismo para um processo de transformação que, atingindo sua liberdade e sua responsabilidade histórica, dilate sempre mais a sua consciência até a universalidade de Cristo. Dirigindo-se aos cristãos de Éfeso, Paulo, em atitude de súplica, pede ao Pai “que ele faça Cristo habitar em vossos corações, pela fé, e que e que estejais enraizados e bem firmados no amor. Assim estareis capacitados a compreender, com todos os santos, qual a largura, o comprimento, a altura, a profundidade; e conhecereis também o amor de Cristo, que ultrapassa todo conhecimento, e sereis repletos da plenitude de Deus” (Ef 3, 17-19). Paulo fala do conhecimento do Mistério oferecido pela fé que de fato supera o conhecimento intelectual embora não o exclua. De outro lado, a expressão “repletos da plenitude de Deus” faz pensar num conhecimento ou, melhor talvez, numa experiência do Mistério sem outras mediações a não ser a graça, segundo a riqueza da glória de Deus, por meio do seu Espírito(Ef 3,16). Seja como for, as palavras de Paulo dão ensejo a ver mais de perto os traços caraterísticos da mística cristã que a própria fé anuncia como uma promessa.
(Leia na 4ª Parte: AS CARACTERÍSTICAS DA MÍSTICA)


[1] Kees Waaijman, Spiritualiteit, pp.846-847
[2] Cf Luigi Giussani, Um lugar, em 30 DIAS,  novembro de 2000, pp 38-44.
[3] Cf  Carlos Josaphat,OP, Fé, esperança e caridade, São Paulo, Paulinas, 1998, p.37.

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