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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

*MÍSTICA E MÍSTICOS. MÍSTICA: PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO (5ª Parte)

Dom Frei Vital João Wilderink, O. Carm.

 
Perceber a realidade tal como ela é chama-se experiência. Em qualquer experiência a pessoa se capta em relação com a realidade do mundo, da natureza, de si mesma, de Deus. Muitas vezes trata-se de contatos rotineiros, às vezes de uma descoberta de algo novo que atrai e convida, como acontece com pessoas que vão ver várias vezes o mesmo filme, o mesmo quadro, a mesma paisagem. A experiência é sempre acompanhada de sentimentos e emoções, de pensamentos e, mesmo, de ações. O que importa, porém, é a consciência da relação. Sem ela não se pode falar de experiência pessoal.  A experiência trata e carrega, veicula a realidade tal como dela o homem pode tomar consciência. Consciência que varia de acordo com o nosso jeito de ser, a nossa personalidade caracterizada por certos traços psicológicos cuja estruturação depende de diversos fatores, aspirações, critérios, etc. que ao longo dos anos interiorizamos. O que faz a pessoa situar-se frente às coisas que a rodeiam. É algo normal e até necessário para alguém poder tomar posição nos seus relacionamentos.[1]
Em tudo isso, porém, não deixa de haver uma certa ambiguidade porque a pessoa ao tomar posição, define a realidade que vem ao seu encontro. Em outras palavras: quem diz “eu” facilmente cria distância e isolamento. Transferimos o nosso eu para os outros, as coisas, o mundo, etc. O nosso eu classifica as coisas. Quanto mais trabalhamos com categorias do próprio eu, tanto menos somos capazes de um verdadeiro encontro. O nosso eu é o melhor vigia da sua própria prisão. Como acontece ao que se posiciona numa perspectiva neo-liberal: só é real o que promove o mercado. Aos poucos pode surgir uma alienação que impede o reconhecimento de outras dimensões importantes da vida humana. A mística oferece nesta época-do-eu valiosos contra-modelos, como Francisco de Assis que na sua pobreza se reconcilia com tudo e com todos, 
O que dizer da nossa relação com  Deus? Por vezes recebo folders de casas de retiro com o convite: venha fazer uma experiência de Deus! Penso que o êxito de um retiro depende da descoberta de que só Deus pode se mover para que o homem o encontre, pois se é Mistério, pertence a Ele estabelecer a modalidade de meu encontro com Ele. É doloroso descobrir que temos a tendência de reduzir Deus ao nosso tamanho. Mesmo querendo assumir a nossa condição de “peregrinos do Absoluto” carregamos na mochila os nossos “ídolos domésticos”, como fez Raquel quando partiu com Jacó, seu marido, para a Terra prometida a Abraão: “colocou-os na sela do camelo e sentou-se em cima”(Gn 31,34).  O próprio Jacó, apesar  da sua “teologia” mais ortodoxa que a da sua esposa, lutou com Deus a noite inteira até a aurora. Luta que deixou uma lembrança: Jacó ficou mancando. Mas não conseguiu que o “Adversário” lhe revelasse sua identidade (Gn 32,23-33). São imagens que ilustram o itinerário dos místicos. No século XIV, o autor inglês anônimo do tratado A nuvem do não-saber, utiliza uma linguagem que pode estranhar por uma aparente agressividade em relação às criaturas. Na realidade, o autor visa o eu que se apropria as criaturas e o próprio Deus, o que impede a verdadeira união com Ele. Só no despojamento do eu, descobre-se que não existe competição entre Deus e as criaturas.
 
Não permita que nada influa em sua mente ou em sua vontade, a não ser Deus. Tente destruir todo e qualquer conhecimento e experiência de qualquer coisa abaixo de Deus e reprimir, e arremesse tudo bem abaixo sob a nuvem do esquecimento. Entenda que neste exercício você deve esquecer não só todas as criaturas fora de você - e o que elas fazem e o que você faz - mas também deve esquecer você mesmo, até o que fez por causa de Deus. Porque é próprio do amante perfeito não apenas amar acima de si mesmo aquilo que ele ama, mas também em certo sentido detestar a si mesmo por causa daquilo que ele ama. É assim que deve fazer em relação a si mesmo. Todo objeto que influencie a sua compreensão e a sua vontade, você deve considerar como abominável e enfadonho... Esta massa disforme nada mais é do que você mesmo; isto deverá parecer-lhe como uma coisa única, só e solidificada com a substância do seu ser, como se não houvesse divisão entre eles. Portanto, você tem que destruir todo conhecimento e sentimento de todo tipo de criatura, porém muito especialmente de você mesmo. Pois é do seu próprio conhecimento e experiência que dependem o conhecimento e a experiência de todas as demais criaturas.[2]
O eu só admite o que lhe é conhecido. É um terreno cercado, propriedade particular onde o estranho, o desconhecido não entra. O Outro que é Deus também o deixa constrangido se não se assentar na cadeira que lhe reservamos. Quando a sua Presença se anuncia, tão diferente das visitas programadas pelo eu, este não sabe mais o que fazer. Perplexo, perdido, vai percebendo a sua situação de alienação no relacionamento com Deus. A casa do eu fica toda desarrumada. Já não se sente à vontade na sua casa “religiosa”, mas não encontra uma saída porque no vazio que se criou não há indicação do rumo a seguir. Mas a noite é necessária para encontrar a luz. João da Cruz descreve esta aventura mística no poema da Noite escura da subida do Monte Carmelo. No desenho que fez desse itinerário da subida, escreveu numa certa altura: Quanto mas tenerlo queria, com tanto menos me hallé. Há uma experiência da própria impotência diante do Mistério de Deus. E no outro flanco da montanha: Quanto menos lo queria, tengolo todo sin querer. A manifestação do Mistério pertence à iniciativa gratuita do Absoluto. Descobrir a Realidade última que está por baixo de todas as realidades visíveis, exige um desentulhamento da casa do eu.
 
Em uma noite escura
com ânsias, em amores inflamada,
ó ditosa ventura!
saí sem ser notada,
estando já minha casa sossegada.
 
Às escuras, segura,
pela secreta escada disfarçada,
ó ditosa ventura!
em trevas, às escondidas,
estando já minha casa sossegada.
 
Nessa noite ditosa,
em segredo, porque ninguém me via,
nem via eu qualquer coisa,
exceto a que no coração ardia.
 
Fiquei-me e esqueci-me,
o rosto inclinado sobre o Amado,
cessou tudo e rendi-me
em meio de açucenas olvidado.




[1] Cf Paul Mommaers, Wat is mystiek, pp. 26-34.
[2] A nuvem do não-saber, tradução portuguesa, São Paulo, Paulus, 1987, capítulo XLIII, pp. 111-112

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