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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

O corpo e a renúncia aos prazeres da carne na Idade Média Cristã presentes nos Concílios Ibéricos dos séculos V-VI d.C. e do século XIII d.C.

Sheila Rigante Romero
 
Introdução

O presente artigo objetiva mostrar como a construção das relações e das práticas sociais institui normas de condutas, estabelece espaços culturais por meio de interdições ou ritos de passagem. Tais normas se aplicam ao corpo de cada indivíduo, grupo, categoria ou classe social. Os estudos referentes à sexualidade e ao corpo constituem-se em objetos essenciais para o entendimento dos diversos significados das relações humanas, compreendidas no seus mais variados e complexos sentidos.

Michel Foucault, precursor dos estudos referentes à sexualidade, problematizou as questões da sexualidade humana e sua relação com o corpo. A sexualidade, para ele, não é uma qualidade herdada da carne que várias sociedades louvam ou reprimem – não como pensava Freud, um impulso biológico que a civilização canaliza em uma direção ou outra. Mas sim, uma forma de moldar o self “na experiência da carne”, que por si só é constituída em torno de certas formas de comportamento (LAQUEUR, 2001: 24). O sexo, assim como o ser humano, é contextual. É impossível isolá-lo de seu meio discursivo e de sua caracterização socialmente determinada, ao tentar fazer isso incorre ao erro. O corpo privado, incluso, estável, que parece existir na base das noções modernas de diferença sexual, é também produto de momentos específicos, históricos e culturais. Ele também, como os sexos opostos, entra e sai de foco (LAQUEUR, 2001: 27).

Para Foucault até o século XVII as questões da sexualidade ainda não buscavam pelo segredo, vigorava-se uma certa franqueza em relação ao “uso dos prazeres”, e as palavras não eram tão disfarçadas a ponto de serem reduzidas a um vocabulário do que era ou não permitido dizer. Todavia, no início do século XVIII o pensamento burguês dá origem à Idade da Repressão, que coincide com “o desenvolvimento do capitalismo essa repressão que se pode ainda fazer coexistir, discretamente, em que o medo do ridículo ou o amargor da história impedem a maioria dentre nós de vincular: revolução e felicidade; ou então, revolução e um outro corpo, mais novo, mais belo; ou, ainda, revolução e prazer” (FOUCAULT, 1989: 11-12). Como o próprio autor mostra, designar o sexo seria cada vez mais difícil. Para domá-lo num plano real torna-se necessário reduzi-lo ao plano da linguagem, ou melhor, controlá-lo na sua livre circulação no discurso. Dessa forma, percebe-se que Foucault considera o silêncio como um conjunto de estratégia empregada para a montagem do discurso. O modo como uma sociedade lida com o saber e o poder (termos sinônimos) se realiza através da montagem de dispositivos discursivos (FOUCAULT, 1989: 181).

Os estudos produzidos sobre sexualidade, observados no desenrolar do século XIX, incorporaram as perversões e especificações do indivíduo, visto que nestes discursos há o enraizamento da cultura cristã, cuja construção da família baseia-se em casamentos monogâmicos entre casais heterossexuais, de forma que dêem continuidade a espécie humana.O Ocidente definiu novas regras no jogo dos poderes e prazeres, configurando a fisionomia rígida das perversões. (FOUCAULT, 2001: 96). Esses discursos explicavam os comportamentos e ações do homem por meio das Ciências Biológicas, como forma de garantir a preservação da instituição familiar.

No decorrer do século XX, estudos introduziram a problematização da questão de gênero, contestando a tendência que se tem em considerar como natural apenas o que é masculino e o que é feminino. Observou-se que a relação “homem/mulher” e “macho/fêmea” excedem os limites dessa relação binária. Por isso, escolheu-se criticar a definição do gênero pela categoria de sexo (BUTLER, 2003: 26), com o intuito de identificar os métodos que lhe são constitutivos. A noção de gênero expressaria, assim, os valores culturais ostentados pelo corpo sexuado, não podendo dizer que ela suceda de um sexo, desta ou daquela maneira. O contraste entre sexo e gênero insinua uma interrupção entre corpos sexuados e gêneros culturalmente construídos (BUTLER, 2003: 24). Com isso, entende-se que a formulação do termo “homens” não seja relativo necessariamente a corpos masculinos, assim como a expressão “mulheres” não sirva apenas para designar corpos femininos.

Segundo Theml, “o corpo humano é socialmente construído por meio da escolha social de um certo número de valores que configuram o que o homem deve ser, tanto em relação às virtudes morais e intelectuais quanto à representação, à exposição e uso do seu corpo ‘físico’” (THEML, 1998: 309). Nota-se, portanto, que o corpo não pode ser trabalhado pelo historiador apenas como biológico, ao contrário, deve ser percebido como árbitro de sinais culturais. Cada representação do corpo informa sua história e reúne um sistema de valores. Os discursos sobre sexualidade, por conseguinte, apresentam a construção de cada sexo num dado contexto social e cultural. A cada contexto existe uma mudança do discurso, e a sua demarcação é tanto mais difícil quanto menos instituído for este contexto. Tal discussão é essencial para compreender a percepção que o homem medieval tinha de sua sexualidade e de seu corpo, em sua interação social, nas construções ideológicas, num conjunto de predicados morais de comportamento, socialmente ratificado e constantemente pensado, relembrados, ou seja, em incessante processo de construção; e também para entender como se deu a normatização da sexualidade e do corpo do homem e da mulher medieval por parte dos clérigos, por meio dos Concílios Ibéricos. Essa discussão referente à sexualidade e ao corpo é relevante para entender que na Idade Média, como afirma Karras, as identidades dos medievos eram fundamentalmente formadas (moldadas) pelos seus status sexuais - não se eles eram “homossexuais” ou “heterossexuais”, como hoje, mas se eles eram castos ou sexualmente ativos (KARRAS, 2005: 09).

Os Concílios Ibéricos dos séculos V–VI d.C. e a influência do pensamento de Santo Agostinho na renúncia dos clérigos aos prazeres do corpo

Pode-se notar que, desde as formulações dos Concílios Ibéricos que normatizavam a vida cotidiana dos clérigos e leigos, a Igreja seria a primeira a incentivar o discurso sobre o sexo, quando passou a estimular o aumento das confissões aos padres. As insinuações da carne deveriam ser ditas em detalhes, incluindo os pensamentos carnais. O bom cristão precisaria, portanto, fazer de todo o seu desejo um discurso. Ainda que tivesse ocorrido uma interdição de certas palavras, esta era apenas uma maneira de tornar o discurso sobre a sexualidade e o corpo moralmente aceito e tecnicamente útil. Na Idade Média Cristã ocorreu uma derrocada das práticas corporais, assim como a “supressão ou ainda o confinamento dos lugares do corpo da Antigüidade, o corpo se torna paradoxalmente o coração da sociedade medieval” (LE GOFF, 2006: 31). Por meio das exigências canônicas se impôs o controle da Igreja ao domínio até então regido pelas famílias, homens e mulheres medievais, levando-os a manifestarem-se em relação ao seu corpo e a sua sexualidade (ROSSIAUD, 2006: 477).

Nos Concílios Visigóticos – a partir dos cânones que normatizavam juridicamente a vida cotidiana dos clérigos e dos leigos – pode-se observar a necessidade da Igreja de introduzir aos cristãos a noção de pecado e a importância da renúncia ao prazeres sexuais, utilizando-se do pensamento de Santo Agostinho sobre a questão da continência do corpo para manter a pureza da alma. Para Agostinho a sexualidade tinha uma finalidade estritamente delimitada: simbolizava um único e decisivo acontecimento dentro da alma. Ecoava no corpo a conseqüência inalterável do primeiro pecado da humanidade (Adão e Eva) (BROWN, 1990: 347). A tentação sexual era uma provação temível e debilitadora, por isso, a prática da continência representava a capacidade do homem de vencer as provações carnais e alcançar num plano metafísico a pureza da alma. As paixões e ações incontroláveis e descomedidas deveriam ser substituídas por ações comedidas. Tudo sobre o sexo, após a perda da pureza, podia ser sentido como lembranças contínuas na carne das tensões da condição humana fundamentalmente imperfeita. Tudo isso teve início com o aparecimento da cristandade (LAQUEUR, 2001: 73).

Para Laqueur, a nova interpretação de Agostinho sobre a sexualidade como um “sinal interno e sempre presente da alienação da vontade pela perda da pureza criou uma área alternativa para o corpo gerador” (LAQUEUR, 2001: 74).De acordo com o autor, as idéias pagãs e cristãs sobre o corpo coexistiram como várias doutrinas incompatíveis sobre a semente, a procriação e as homologias corpóreas, pois as diferentes comunidades pediam coisas diferentes da carne. Os monges e os paladinos, os leigos e o clero, (...) os confessores e os teólogos, em inúmeros contextos podiam continuar a interpretar o corpo segundo suas necessidades para compreendê-lo e manipulá-lo, à medida que os fatos do gênero mudavam (LAQUEUR, 2001: 74).

Durante o século V e VI, o cristianismo estava tornando-se religião do Estado e reprimia o corpo por meio da renúncia aos prazeres da carne e o controle a estas a partir das confissões. Por outro lado, com “a encarnação de Deus no corpo de Cristo, faz do corpo do homem o tabernáculo do Espírito Santo” (LE GOFF, 2006: 31). Ou seja, de um lado os clérigos reprimem as práticas corporais, de outro, as glorifica. Depreende-se assim, que o corpo e as práticas sexuais oscilam entre a repressão e a exaltação, a humilhação e a veneração.

A influência agostiniana na renúncia dos clérigos aos prazeres carnais para a purificação do corpo como forma de aproximar a alma ao mundo de Deus pode ser notada no IV Concílio de Toledo, cânone XXI, que explica a importância da castidade dos bispos pois, estes deveriam ser o exemplo para a sociedade medieval de um comportamento “correto” aos olhos de Deus (IV Concílio de Toledo,Cânone XXI, p.200-201).

Os Concílios Ibéricos do século XIII e o liame entre o corpo e a alma no pensamento de São Tomás de Aquino

No século XIII, período em que foram escritos os concílios de Calahorra e de Latrão, as questões do corpo e do prazer sexual não estavam ligadas ao mal, e a preocupação dominante passava a ser com a saúde. Entretanto, os diagnósticos mais importantes reforçavam a moral e condicionavam as atitudes. No IV Concílio de Latrão nos cânones 21 e 22 os padres, durante as confissões precisavam ter discernimento e prudência como um médico experiente ao aplicar as penitências aos fiéis; aos enfermos era preciso zelar primeiro pela alma depois pelo corpo. Os diagnósticos médicos recomendavam um controle no desejo sexual pois – ainda baseados nos estudos de Galeno – o “abuso do coito é muito perigoso: ele abrevia a vida (a destacada longevidade dos eunucos prova-o a contrario), debilita o corpo, consumindo-o, diminui o cérebro, destrói os olhos, conduz à estupidez” (ROSSIAUD, 2006: 478).

Tais diagnósticos, baseados no pensamento de São Tomás de Aquino, entendiam que a alma não estava dissociada do corpo, ao contrário, a alma era a forma do corpo organizado, devendo nascer e morrer com ele sem ter nenhuma destinação sobrenatural. Em oposição a Santo Agostinho, que pensava que quanto mais se renunciasse à carne mais próximo de Deus se chegava – por isso sua concepção da cidade dos homens e a cidade de Deus – para São Tomás, a alma humana era o horizonte onde se tocavam o mundo dos corpos e dos espíritos, ou seja, a alma e o corpo estavam intrinsecamente ligados. Dessa maneira, de acordo Rossiaud, para os médicos e filósofos medievais a saúde do espírito era inversamente proporcional ao vigor genital, tendo em vista que as agitações carnais, antes de representarem um pecado contra Deus, eram faltas contra a razão. O gozo físico era distinto do prazer racional; ele era uma força incontrolável, um tipo de loucura, de furor. Como reafirmam os filósofos do século XIII, depois dos latinos, dos gregos ou dos árabes, o desejo era subversão e submersão do ser (ROSSIAUD, 2006: 479).

Os cânones, mesmo a partir do século XIII, sempre colocaram a necessidade da renúncia dos desejos sexuais, sugerindo que jamais fossem seduzidos pelos impulsos e incontinências corporais. Para isso, a Igreja ainda precisava criar no pensamento laico o significado de “pecado”. Por isso a insistência nas confissões para a salvação da alma por meio das penitências aplicadas aos fiéis pelos padres. Era necessário transformar as questões do corpo e seus prazeres em um discurso ao padre, como foi observado por Foucault, ao tratar as confissões medievais cristãs como um dispositivo de poder utilizado pela Igreja. Como também é possível observar no cânone 21 do IV Concílio de Latrão, no qual enfatizava-se a necessidade de sempre tornar público tal cânone nas igrejas (p.174). A aplicação da penitência pelo padre – devido ao seu poder espiritual e da sua renúncia aos prazeres do corpo – aos confessores e pecadores, permitia a salvação do corpo pecador e impuro para salvar a alma da perdição.

O liame entre o corpo e a alma pode ser visto no cânone 22, em que a alma doente, devido aos pecados da carne, se reflete na enfermidade do corpo, portanto, a necessidade de chamar os “médicos da alma” (os padres) antes do “médico do corpo” aplicar os medicamentos (p.175). A preocupação com os costumes e condutas dos clérigos e leigos em relação aos prazeres carnais e a pureza da alma, também pode ser percebida no IV Concílio de Latrão, cânone 14, que reforçava a importância da continência – exigida desde o II Concílio de Braga – e da castidade dos clérigos, além de castigos severos àqueles que não conseguissem renunciar aos prazeres do corpo. Contudo, é importante destacar que nesta época corpo e alma estavam unidos, por isso, para a pureza da alma era necessária a pureza do corpo, e o corpo do padre deveria ser limpo para celebrar a palavra de Deus (IV Concílio de Latrão, Cânone 14, p.170-171). No século XIII o cuidado com o “uso prazeres” estava ligado ao cuidado com a pureza da alma. Controlar seus desejos e vontades significava manter uma alma limpa das luxurias da carne e aproximá-la dos ensinamentos de Deus. Um homem continente representava o princípio da razão que une o corpo e a alma, ou seja, o Espírito Santo.

Conclusão

Em suma, é possível afirmar que a Idade Média Cristã – dos séculos V, VI e XIII d.C. – produziu uma grande quantidade de discursos referentes ao corpo e à sexualidade por meio do incentivo a confissão como forma de manter, a partir da autoridade espiritual dos clérigos, o controle sobre a vida religiosa e cotidiana do homem e da mulher medieval. O discurso sobre a renúncia dos prazeres carnais para a salvação da alma produziu uma normatização do corpo e dos prazeres na Idade Média Cristã, o que Foucault chamou de um “policiamento do sexo”.

O incentivo a confissão – que se consolidou na vida do homem medievo no final do século XVI – possibilitou a transformação das práticas sexuais em discursos o que deu aos padres o direito de intervir, punir, julgar perdoar às condutas e ás práticas sexuais do medievo cristão e, também, deu o direito ao padre a inocentá-lo, a purificá-lo, a dar-lhe a salvação divina após a confissão de todos seus pecados da alma e do corpo, e após o cumprimento da penitência, esta regulada e sacramentada no IV Concílio de Latrão em 1215. Observa-se, assim, que a Instituição clerical foi a primeira a incentivar o discurso sobre o sexo, quando passou a estimular, como visto anteriormente, o aumento das confissões ao padre. As insinuações da carne deveriam ser ditas em detalhes, incluindo os pensamentos sobre o sexo.

 

Referências

BROWN, Peter. 1990. “Agostinho: sexualidade e sociedade”. Corpo e sociedade. O homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 318-351.

BUTLER, Judith. 2003. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

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KARRAS, Ruth Mazo. 2005. Sexuality in Medieval Europe. Doing unto others. London: Routledge.

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ROSSIAUD, Jacques. 2006. “Sexualidade”. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente medieval. Bauru, SP: Edusc, vol. 02, p. 477–494.

SCOTT, Joan Wallach. 1996. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Recife: S.O.S. Corpo.

THEML, Neyde. 1998. “História e imagens: ordem e transgressão do corpo nos vasos atenienses”. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da (org.). História e Imagem. Rio de Janeiro: UFRJ- Capes, p. 305-319.

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