O religioso carmelita Bruno Secondin (na
foto, à esquerda) acaba de pregar os Exercícios Espirituais ao Papa e à cúria.
Com um método novo e centrado na extraordinária figura do profeta Elias.
Acredita que foi uma “graça” para ele, que se sentiu como “entre irmãos”. O
Papa lhe agradeceu por seu trabalho: “Você conseguiu semear”. O carmelita
semeador também acredita que a Igreja precisa mudar a sua linguagem e que o
Papa “quer proporcionar uma nova alma a todo o sistema curial”. A entrevista é
de José Manuel Vidal e publicada no sítio espanhol Religión Digital,
27-02-2015. A tradução é de André Langer.
Eis
a entrevista.
Impõe
respeito pregar os Exercícios Espirituais ao Papa e à cúria?
É uma bela tradição que o Papa e a cúria
façam os Exercícios Espirituais juntos. Até o Pontificado do Papa Bento XVI
eram feitos no Vaticano e, para as meditações reuniam-se na Capela Redemptoris
Mater. Mas eram mais conferências que meditações e, habitualmente, alguns meses
depois, era publicado o livro com o texto completo das meditações. Não era tão
fácil obter um clima de silêncio e de oração, como se requer nos Exercícios
Espirituais.
O Papa Francisco pensou, ao contrário,
que faria bem à cúria uma autêntica experiência dos Exercícios, fora do
Vaticano, em um clima de silêncio e de oração, no clássico estilo inaciano. Por
isso, foi escolhida uma casa de espiritualidade (em Ariccia, perto de Castel
Gandolfo, a 30 quilômetros de Roma), onde estiveram todos juntos, o Papa, os
cardeais e os bispos. O lugar é bonito e espaçoso e, inclusive, pode-se
garantir a segurança.
Desta forma, o evento converte-se em um
exemplo para todos: também a cúria leva a sério esta atividade espiritual. Eu
não me senti como o diretor que tudo controla, mas como um irmão a mais (tenho
75 anos), um fiel a caminho com minhas fragilidades e minha paixão pelo Senhor.
Procurei compartilhar com eles o amor à Palavra e o desejo de uma Igreja que
não dorme, mas que se deixa guiar pelo “Espírito criador, que fala pelos
profetas”, como dizemos no Credo.
Qual
foi o tema central dos Exercícios e suas ideais chaves?
O título geral foi ‘Servidores e
profetas do Deus vivo’. E o subtítulo: ‘Uma leitura pastoral e sapiencial do
profeta Elias’. Segui o método da lectio divina, ao qual me dedico há muitos
anos e no qual tenho ampla experiência, precisamente na igreja que se encontra
ao lado do Vaticano.
A figura de Elias adapta-se muito bem à
realidade atual: é um profeta sempre a caminho, sob o impulso da Palavra. E tem
que enfrentar problemas semelhantes aos nossos: a busca do sentido na vida, o
fundamentalismo, o diálogo inter-religioso, o fracasso pessoal, a
solidariedade, a instrumentalização de Deus, a intercessão, a defesa do pobre,
o sofrimento sem sentido, etc. Pode-se dizer que até mesmo a geografia na qual
Elias vive tem um sentido sugestivo. Ele está sempre na saída para as
fronteiras (inclusive os lugares mais distantes, como Sarepta e o Monte Horeb),
até o final da sua vida, quando desaparece no meio do fogo no outro lado do
Jordão.
Por
que não fez referência a um tema carmelitano, como seria normal neste ano do
centenário de nascimento de Santa Teresa?
Pensei também neste tema, que teria
encaixado perfeitamente comigo e com este ano. Mas depois optei em ir às
grandes cenas do profeta Elias e utilizá-lo seguindo uma ‘progressão’, que vai
da busca da autenticidade à liberdade interior e à cura, à descoberta de um
Deus diferente, ao caminho da justiça, da solidariedade e da intercessão, para
desembocar na profecia da fraternidade.
Os membros da cúria têm experiências
culturais e espirituais tão diferentes que não é fácil juntá-las. Pareceu-me
que Elias se adaptava perfeitamente, dada a sua importância bíblica e a
originalidade de suas experiências. Além disso, sinto profundamente o desejo de
que, na Igreja, a Palavra ocupe realmente o centro e seja a fonte da
espiritualidade.
A
Santa de Ávila falava de seguidores de Jesus “chagados”, algo que conecta bem
com a ideia de Francisco de converter a Igreja em um hospital de campanha.
Você tem razão. Mas também Elias se
encontrava com situações catastróficas e com emergências imprevistas. Para a
Igreja de hoje, medir-se com este grande profeta pode ser uma ocasião de
inspiração de cara com uma nova criatividade. Tenha presente que quando o Papa
Francisco fala de ‘hospital de campanha’ não quer referir-se ao campo, mas às
batalhas e às guerras, onde se montam precisamente os ‘hospitais de campanha’,
isto é, lugares improvisados e ambulantes. Elias encontra-se em situações
inesperadas, tanto de sofrimento como de iniquidades, isto é, com
extraordinárias experiências de Deus.
A
espiritualidade está na moda. Isso é um benefício ou um problema?
Hoje, a espiritualidade está na moda,
mas em meio a uma situação de profunda confusão. Muito do que se chama
‘espiritualidade’ é apenas marketing, sem dignidade nem seriedade. Devemos
estudar profundamente a inquietação que aninha por debaixo deste fenômeno, mas,
ao mesmo tempo, reconhecer que a espiritualidade está sendo repensada profunda
e seriamente. Eu mesmo tentei fazê-lo nos livros que escrevi durante todos
estes anos. O último que escrevi aborda, precisamente, esta moda da
espiritualidade e oferece critérios de discernimento. Abordo também temas novos
como o corpo, o tempo, a cultura digital, os novos modelos de mística e a crise
atual. Intitula-se ‘Inquietos desejos de espiritualidade. Experiências,
linguagens e estilos’ (Bolonha, Ed. Dehoniana, 2012), com prólogo do cardeal
Ravasi.
Há
uma nova forma de entender a santidade?
Os velhos modelos de santidade seguem
tendo ainda espaço e suscitando atenção, sobretudo através das numerosas
beatificações e canonizações de pessoas que viveram em outro universo cultural
e em outro modelo de Igreja. Mas não suscitam interesse no empenho de seguir
este caminho... Devemos repensar profundamente estes modelos, acolhendo novos
percursos guiados pelo Espírito, que segue operando com muita criatividade.
Devemos mudar inclusive o léxico. Por
exemplo, fala-se de virtudes ‘heróicas’, um termo que não evoca a linguagem
bíblica, mas a linguagem mítica helenística. Jesus não foi um ‘herói’, assim
como nem Maria nem os apóstolos. Foram ‘zaddiq’, ou seja, justos e pios, termos
bíblicos que indicam coisas diferentes das de herói, que exalta inclusive o
esforço pessoal, a unicidade isolada, o superman. E desta santidade comum e
normal há muitos exemplos entre nós, algo que o Papa Francisco recorda com
frequência.
Como
traduzir na linguagem atual os ‘pecados capitais’?
Você coloca, precisamente, um dos
problemas (junto com muitos outros) da linguagem moral e espiritual.
Necessitamos, primeiro, desconstruir a linguagem; do contrário, ninguém entende
nada. Necessitamos fazer um novo exercício de criatividade linguística e
simbólica. Vivemos repetindo velhas antropologias com o uso de termos que já
quase ninguém entende. O Papa Francisco está ajudando a Igreja a mudar a
linguagem. Ele mesmo inventa palavras novas, como doenças curiais, alzheimer
espiritual, etc. E não ajuda apenas com suas palavras, mas também com seus gestos,
com seu estilo, com suas visitas, com seus abraços... muitas coisas se tornam
novas.
Qual
é o segredo, na sua opinião, da sedução que Francisco exerce sobre as pessoas?
O Papa Francisco descobriu o sentir
profundo das pessoas. As pessoas necessitam de alento e de esperança,
humanidade sem formalismos, uma sacralidade direta e espontânea, austeridade
sem farisaísmo, ternura e misericórdia. E as pessoas encontram tudo isso em
Francisco, oferecido com naturalidade e espontaneidade, com esse carinho latino-americano
que nos falta na Europa. É incrível como as pessoas gostam do Papa. E não
apenas os fiéis, mas todos, inclusive pessoas de outras religiões ou ateias.
Cuidado em tocar no Papa Francisco!
Por
que suas reformas estão encontrando tantas resistências?
Não sei se é verdade que há tantas
resistências. Às vezes, vocês, os jornalistas, destacam os contrastes com cores
muito vivas (preto e branco). A reforma da cúria é uma tarefa gigantesca. A
situação não é fruto da última década, mas de séculos de sabedoria e de
reformas, de adaptações e de tentativas, de correções e de esquemas jurídicos.
Tudo isso forma uma espécie de ecossistema. Por isso, qualquer mudança gera
dificuldades, não tanto pela oposição, mas porque tem repercussões complexas e
em rede. O Papa Francisco sabe disso. Está claro que não lhe falta capacidade
estratégica. Mas necessita também de tempo e equilíbrio. Não pode inventar de
um dia para o outro os colaboradores à sua imagem e semelhança. Por isso, quer
proceder com diálogo, com discernimento, passo a passo e com respeito. Sua
preocupação consiste antes em proporcionar uma nova ‘alma’ a todo o sistema. E
ele é o primeiro a viver este novo ‘estilo’, com audácia e liberdade, algo que
salta aos olhos. Porque seu próprio estilo é uma força ‘reformadora’ que não
deve ser subestimada.
O
Papa Francisco pode estar em perigo?
Não exageremos! As pessoas querem
muitíssimo o Papa Francisco. É evidente que pode surgir um fanático a qualquer
momento. Ninguém pode estar absolutamente seguro, nem sequer qualquer um de
nós. Mas creio que a segurança cumpre o seu papel e o Papa não se preocupa com
isso. Uma vez disse aos jornalistas, brincando: “Na minha idade, eu não teria
muito a perder”. Esta serenidade agrada às pessoas, ajuda-as a não viver num clima
de terror e confiar um pouco mais em Deus. E, além disso, há muitas pessoas que
rezam por ele, com amor sincero e não por obrigação.
Uma
última pergunta, Pe. Secondin: o que pode nos dizer sobre a experiência vivida
nestes dias em Ariccia?
Foi uma experiência realmente
excepcional, como qualquer um pode entender. Um clima de silêncio e de oração.
Uma oração bem preparada e bem feita, com uma presença séria de todos os mais
de 80 participantes. Senti, sobretudo no começo, uma emoção natural. Coisas
assim não se vive todos os dias. Depois, o novo método, o insólito tema e,
inclusive o ambiente tão diferente daquele do Vaticano, pesaram muito.
Sentimo-nos todos muito bem. Pude falar inclusive confidencialmente com alguns
participantes, inclusive o Papa Francisco. Trago muitos coisas no coração. Foi
uma graça que espero que produza frutos bons também em mim.
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