Dividido ideológica, sociológica e etnicamente, o
catolicismo precisa redefinir-se, defende Massimo Faggioli, teólogo italiano, professor
na University of St. Thomas (EUA) e na Villanova University (EUA), em artigo
publicado por Global Pulse, 29-02-2016. A tradução é
de Isaque Gomes Correa.
Segundo ele, é “um paradoxo que a Igreja Católica,
que teme introduzir métodos democráticos em sua
própria estrutura de governo, seja uma das defensoras mais convictas da democracia
que não seja procedimental, mas de natureza social; isto é, uma democracia que
esteja a serviço do todas as pessoas”.
Eis o artigo.
Sem dúvida, o Papa Francisco é
antielitista. A sua biografia, sua linguagem e sua mensagem estão
firmemente enraizadas na “Teologia do Povo”. Mas isso é o suficiente para rotulá-lo
de populista?
Essa indagação é importante por dois motivos:
primeiro, para compreender Francisco e a
oposição a ele; e, segundo, para compreender o quanto a Igreja Católica faz
parte da “era do populismo” em que estamos vivendo.
Populismo e reações negativas ao estilo de
catolicismo de Francisco
Um dos modos típicos em que se pode descartar o
convite do papa latino-americano a um sistema social e econômico mais justo é
rotulando-o de populista.
Como prova, os opositores apontam para os seus
comentários históricos a respeito do candidato populista à presidência dos EUA, Donald Trump.
“Uma pessoa que pensa apenas em construir muros, onde quer que seja, e não em construir pontes, não é um cristão. Isso não está no Evangelho”, contou aos repórteres o papa de 79 anos no
final de sua recente viagem ao México.
“Quanto ao que você dizia sobre se eu aconselharia
a votar ou não: não vou me envolver nisso. Digo apenas que esse homem não é cristão se ele disse coisas como essas. Devemos
ver se ele disse as coisas dessa maneira e nisso dou o benefício da dúvida”, acrescentou.
Os mais famosos dos especialistas católicos
contrários a Francisco ponderaram sobre essas
afirmações e concluíram, como um deles o fez em artigo no New York Times, que Trump e o
papa eram, os dois, populistas.
No entanto, existem muito mais diferenças do que
semelhanças entre este papa jesuíta argentino e o bilionário candidato à
presidência dos Estados Unidos da América.
Acusar Francisco de ser populista diz, na verdade, mais sobre o horizonte
moral e intelectual do mundo ocidental em que a Igreja atualmente vive. Antes
de tudo, tem a questão de quem se põe a acusar o papa de populismo. É interessante ver que aqueles católicos que
formam o seu polo oposto em termos ideológicos são a expressão dopopulismo católico típico das elites.
O colunista acima mencionado do New York Times, Ross Douthat (ex-aluno de
Harvard, um dos símbolos do elitismo americano), jogou, poucos meses atrás, com
a ideia populista de que os teólogos profissionais não
têm uma voz que precisa ser respeitada (pelo menos) no cenário público, onde
“uma guerra civil na Igreja” está em jogo.
O falecido juiz da Suprema Corte americana Antonin Scalia (outro ex-aluno de Harvard) encarnava
um catolicismo que revelava com desprezo os assim-chamados
"sofisticados" formados pela elite acadêmica secular e informados
pela imprensa convencional.
A Igreja na era
atual do populismo
O populismo é muito
complexo na Igreja e está ligado à nostalgia por uma época em que estava claro
quem se encontrava no comando e quem estava ausente. Um exemplo é a natureza elitista da acusação de populismo contra a reforma litúrgica e a virada às
línguas vernáculas.
Agatha Christie, Cristina Campo e,
mais recentemente, o autor alemão Martin Mosebach não
estão exatamente argumentando pela volta da missa em latim. Todavia, defendem a
recuperação de algo que foi popular no sentido de que as pessoas praticavam-no,
mesmo que não o entendessem. Afirmam defender um catolicismo supostamente popular, pré-Vaticano II. Mas este é inerentemente elitista.
Todo discurso sobre o populismo
teológico precisa se relacionar com a ideia de “povo”. O fato é que se tornou difícil identificar “o povo” na Igreja bem como em nosso discurso político.
O século XX foi a era da mobilização das massas no Estado-nação, assim como na
Igreja. Essa era foi substituída por um órgão social e eclesial mais fragmentado.
Costumava ser fácil identificar a elite católica com o clero, com intelectuais católicos
e com líderes políticos católicos. Hoje, o papel de liderança do clero está em
apuros, e existem líderes leigos católicos cuja voz importam mais do que a de
muitos bispos e cardeais.
Por outro lado, “o povo” ainda é uma
categoria importante para a Igreja, mas muito mais como uma ideia teológica (o
Povo de Deus) do que como uma realidade homogênea, socialmente tangível.
Dividido ideológica, sociológica e etnicamente, o
catolicismo globalizado precisa redefinir quem é o seu povo. Aqueles que acusam Francisco de populismo usam um entendimento puramente político de populismo. Muito distantes das preocupações
deles estão implicações teológicas do que significa “povo” para a Igreja.
Mas o populismo é, mesmo, um problema na Igreja
Católica atualmente?
Sim, mas isso nada tem a ver com analogias
superficiais entre o Papa Francisco e Donald Trump.
Uma das consequências inesperadas do Concílio Vaticano II foi o início de uma mudança profunda
das elites no catolicismo contemporâneo. Compreender isso
é uma tarefa enorme que corre por debaixo da superfície do atual pontificado. O
papa está bem ciente da transformação nas elites que
aconteceram nos últimos 50 anos mais ou menos.
Basta olhar para como ele se dirige a dois
atores-chave no cenário onde a batalha pela liderança católica ocorre: osbispos e os novos movimentos eclesiais.
Por exemplo, ele se dirige aos bispos de um modo que revela a sua opinião sobre
as deficiências da eclesiologia “episcopaliana” do Vaticano
II.
Mas Francisco não está
apenas falando aos bispos sobre as ilusões dos seus eternos líderes. Em seus
discursos e diálogos com os movimentos católicos (Comunhão
e Libertação, Caminho Neocatecumenal, etc.), o papa sempre salienta que a Igreja
não necessita de elites que estejam isoladas do
resto da comunidade eclesial.
Mas será que isso significa que ele é um líder
populista?
Sim, mas somente se a perspectiva de quem vê
estiver baseada em considerações políticas, como acontece de ser o caso para a
maioria das oposições do papa.
Acusar Francisco de
abraçar o populismo evita, por completo, o fato de que, como
líder de uma “Igreja como Povo de Deus”, ele é constitucionalmente um populista. Também revela que, para os comentadores
mais políticos e religiosos atuantes na imprensa convencional de hoje, o
espectro das culturas políticas aceitáveis é o espaço estreito entre otradicionalismo e o conservadorismo na
direita e, na esquerda, os moderados e reformistas.
Na nossa era, o radicalismo se
tornou a heresia ulterior, tanto na Igreja Católica quanto no mundo dominado pelo paradigma
tecnocrata. O convite à justiça social e econômica é
facilmente reduzido ao populismo (o que,
para uns, é uma variação do comunismo) em um mundo onde a política está em
retirada, o autoritarismo está em ascensão e a Igreja é uma das
últimas instituições globais com a coragem, com a gravitas e com os recursos de
falar a verdade ao poder instituído.
Nessa situação, constitui um paradoxo que a Igreja
Católica, que teme introduzir métodos democráticos em
sua própria estrutura de governo, seja uma das defensoras mais convictas da
democracia que não seja procedimental, mas de natureza social; isto é, uma
democracia que esteja a serviço do todas as pessoas.
E isso é exatamente aquilo que os que acusam Francisco de estar sendo populista não gostam
nesse papa. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br
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